segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

K entre nós

Volta às aulas

Certa vez trabalhei à noite numa escola daqui de Iguaba. Lá matriculou-se José, um aluno que sempre chamou-me a atenção pelo bom comportamento: educado, calado, preocupado em estudar. Assíduo, inclusive, coisa que pouco se vê na rotina do terceiro turno. Fez os quatro últimos semestres do Ensino Fundamental e foi-se.
Tempos depois fomos – eu e o pessoal da secretaria da escola – visitados por policiais militares. Estavam à procura do “Índio”. Observados os registros das matrículas naqueles determinados anos e comparando as fotos que traziam consigo com as que compunham os documentos dos alunos, concluíram ser José o homem procurado. Informamos aos policiais que ele já havia concluído os estudos. Lamentando, eles se foram, certos de que não mais o encontrariam. José estava sendo procurado por ter estuprado uma menina de três anos num outro estado...
Uma vez visitei a Delegacia local daqui para prestar depoimento sobre um assalto à mão armada que sofri dentro de casa. O delegado, então, mostrou-me um álbum de fotos de pessoas já detidas por pequenos furtos ou roubos em residências, com o objetivo de que eu reconhecesse aquele que havia “visitado” meu lar. Quando comecei a folhear encontrei no álbum muitas fotos de ex-alunos das escolas em que trabalhei. A maioria, os mais tranquilos...
Em outra situação um aluno de excelente comportamento repentinamente apareceu vestindo saias comunicando-nos que agora queria ser chamado de “Roberta”. Em outra, um tanto similar, a menina de boas notas compareceu com sua mãe solicitando ser tratada como “João” daquele dia em diante...
Conheci também uma menina de baixíssima estatura, aluna do 6º ano de escolaridade, que não almoçava na escola. E só descobrimos o motivo num conselho de classe de fim de ano: ela não alcançava o balcão do refeitório e envergonhava-se de solicitar a alguém que lhe fizesse este favor. Difícil crescer uma criança que não se alimenta! Uma outra não ia ao banheiro da escola porque suas pernas deficientes não alcançavam o sanitário. A escola não providenciou o acesso digno àquelas meninas. Uma não almoçava. Outra, esperava a hora de ir para casa para usar o banheiro...
O pai de família que golpeou a esposa e os três filhos com uma foice havia estudado numa de nossas escolas, também. E deve ter sido “bom aluno”, como foram “diagnosticados” o menininho que atirou na Professora em São Caetano e o rapazinho lá de Realengo... Os dois se suicidaram, não foi? Não me lembro bem...
Quando as aulas começarem estarão todos lá: o estuprador, o bom menino, o assaltante, o inteligente, o bêbado, o baixinho, o gênio, o tímido, o extrovertido, o alegre, o sofredor... Estarão lá, misturados numa fila indiana, com seus olhares cheios de expectativa acerca do que será do ano letivo que se inicia. Estarão lá, como estivemos um dia nós, Professores, Diretores, Orientadores Educacionais, Supervisores e Inspetores Escolares, crianças que fomos, ou como adultos que voltam ao ambiente escolar para dar conta de um atraso acontecido por algum motivo mais forte.
Importa que estejam lá, pela primeira vez ou retornando. Eis o meu grito por socorro!
Alunos nossos não podem nos surpreender com decisões tomadas a respeito de comportamentos (muito menos devem ser avaliados pela forma como se comportam). Temos que estar intencionalmente alerta. De nada adianta preocuparmo-nos com o currículo se continuamos sendo pegos subitamente com manchetes de jornais que dão notícias de homens e mulheres – agora também de crianças! – que já passaram por nossas mãos!
O menino que resolveu ser menina, e a menina que resolveu ser menino não tomaram a decisão sem sofrer (como é sofrida na adolescência, também, a decisão do menino de ser menino e da menina de ser menina). Tampouco, de uma hora para a outra. Passaram por situações conflitantes. Seus corpos provavelmente falaram durante um bom tempo, inclusive na escola... Quem foi que percebeu? Quem está hoje na escola, como professor ou técnico, atento aos amores, às paixões, às circunstâncias de maravilha e temor que compõem a adolescência?
A história de toda essa gente já foi contada. Umas até estampadas em jornais. Mas quando o sinal da escola tocar anunciando a hora da forma estarão lá, no primeiro dia de aula, todos os atores dos próximos capítulos que construirão a história nova. E não podemos nos esquecer de que somos coadjuvantes dessa história também.
Meus ex-bons alunos eu reencontrei. Estão todos bem, graças a Deus. Os ex-maus alunos perderam-se de mim. Sinto saudade de Luís, um menino que em 1993 quando ameaçado pela mãe por alguma travessura feita dormia numa pocilga, o que o fazia faltar à aula do dia seguinte. O odor fortíssimo do lugar impregnava suas roupas e era fácil descobrirmos onde tinha passado a noite. Uma vez presenciei a Coordenadora repreendendo Luís. E chorei junto com ele. Nunca mais esquecerei o olhar fixo dele no meu: cumplicidade.
Estamos todos - nesse contexto virtual em que vivemos – carentes de cumplicidade. Eu não quero mais ver a escola (ou a inoperância dela) nas entrelinhas das manchetes de jornais. Quero reaver o orgulho, o sentimento de dever cumprido latentes nos corações daqueles que se dizem profissionais do magistério. Na última vez em que fui Diretora de escola, trabalhei com o vestido molhado das lágrimas de um aluno a quem dei colo quando confessou estar apaixonado por uma colega de classe. Hoje, eles estão pra casar. Valeu a pena!
“Volta às aulas”... Ainda tenho a esperança de que um dia isto nos soe, verdadeiramente e para sempre, como um excelente convite!  Não somente a sermos bons educadores, mas também a sermos integralmente humanos.

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